Quantas glórias vãs o mundo de hoje propõe e procura...
Algumas, mesmo inconscientemente, fazem parte dos nossos sonhos diários, daquilo que procuramos continuamente. Desejamos a fama, a glória, os aplausos, as riquezas deste mundo... E como estamos longe da atitude e palavras de São Paulo: «longe de mim gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo».
Mas, a cruz está tão longe do nosso dia-a-dia... e afastamo-la ainda mais, porque a vemos como sinal de um sofrimento que não queremos, que não é desejado...
E pensamos sempre no imediato, numa felicidade visível e instantânea, ainda que tão instável e sem consequências...
Também nós, como os 72 discípulos enviados pelo Senhor, olhamos para a ânsia de frutos imediatos, numa vida que se meça por estatísticas e que traduza o que se vê... Mas, o que não se vê, mas lança raízes no mais profundo do coração e da vida, fica esquecido e perde importância...
Desde o princípio, o envio é claro: não é uma questão de números, até porque os próprios trabalhadores são poucos.
E a verdadeira força do trabalho não é nossa; saibamos pedi-la ao «dono da seara», partindo não confiados nas nossas «riquezas» da bolsa ou do alforge, nem na força dos «quilómetros» percorridos pelas nossas «sandálias», ou nos «muitos conhecimentos» dos que saudamos pelo caminho, mas sim na força d’Aquele que nos envia, a viver a vida em plenitude...
Há vários cânticos, frases, cartazes, expressões que traduzem esta ideia de que somos Igreja… Mas quem é este «somos»? Quem é a Igreja?
Mais uma vez, várias leituras, variadas formas de encarar a questão, de acordo com o que queremos dizer, com a postura assumida, com o momento vivido…
Se a atitude é a de condenação e de crítica, a «Igreja» são os padres e os bispos, aqueles que «decidem e impõem», que «acabam com tradições e a querem destruir», «os que não ouvem e apenas sabem mandar», mesmo que só os procuremos quando precisamos de alguma celebração que queremos «à nossa maneira», ao jeito de «produto de supermercado».
Se a atitude porém é a de louvor e engrandecimento, ou de expressar opiniões sobre as suas formas e expressões, em especial em momentos de festas, a Igreja somos todos nós, mesmo aqueles que apenas lá vamos em celebrações muito próprias e em que tudo parece «servido à la carte», aos nossos gostos e vontades.
Segundo o Catecismo da Igreja Católica, a Igreja é «o povo que Deus convoca e reúne de todos os confins da Terra, para constituir a assembleia daqueles que, pela fé e pelo Baptismo, se tornam filhos de Deus, membros de Cristo e templo do Espírito Santo», ou seja todos os que pelo Baptismo se unem pela mesma fé. E isto implica logo uma mudança de atitude. Porque, se acreditamos, unimo-nos num só povo, numa só Igreja. E se nos sentimos membros dessa mesma Igreja, então é porque acreditamos, porque queremos viver e partilhar com tantos outros essa mesma fé…
E dizemos «creio na Igreja una, santa, católica e apostólica», às vezes, porém, sem reflectir o que estamos a dizer.
Una, porque também procuramos unir uma Igreja tão separada e dividida pelas atitudes humanas; porque deve ser unida uma comunidade que partilha uma única e mesma fé; porque não é apenas intenção que ela se una, como no pedido de Jesus Cristo «que todos sejam um», mas tem de ser vontade e realidade de todos que haja verdadeira união, comunhão de vida. Mas, falamos em união, não apenas a nível universal, mas união até com aquele vizinho com quem não falamos, mas que partilha a mesma celebração connosco…
Santa, não porque sejamos todos santos ou mesmo até «santinhos», mas santa em seus princípios e no convite constante a caminhar para essa santidade a que Jesus convida, santidade que não é «tinta» de gestos e posturas mais «beatíficas», mas viver verdadeiramente no amor, nesse mandamento novo do «amar ao próximo como a si mesmo»…
Católica, não porque a sua sede seja Roma, mas porque a sede sobre a qual ela se edifica é a Verdade, anunciando-a, vivendo-a, proclamando-a. Verdade que é mais do que conjunto de afirmações, mas o próprio Jesus Cristo, que recebemos e anunciamos, centro, princípio e fim deste povo unido e que acredita…
Apostólica, porque alicerçada sobre os Apóstolos, sobre uma Tradição que se mantém e é transmitida ininterruptamente até aos nossos dias, desde as suas origens…
Mas, também uma Igreja que espera, não fantasias e sonhos, mas realidades concretas: «a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir», como dizemos…
E partilhamos esta mesma esperança, uma esperança de vida eterna, com toda uma Igreja que clama em uníssono: «Vinde, Senhor Jesus!».
A tendência que habitualmente sentimos é a da habituação, a de vivermos hábitos.
Pensamos, por vezes: «isto é mau, mas podia estar pior»; e com isto vamos inventando desculpas para «deixar andar», para nos irmos aprisionando por dentro às situações. E esquecemos ou mal interpretamos a liberdade que nos é concedida, só porque é sempre mais fácil culpar os outros ou algo pela falta, ou melhor dito, pelo não uso que fazemos dessa liberdade, do que lutar por ela, libertando-a em nós. Contudo, São Paulo lembra o verdadeiro sentido desta liberdade, ao dizer: «não fazeis o que quereis».
E, viver a vida, é estar sempre pronto a partir, como diziam os antigos pensadores. Até porque a vida não está parada, estagnada nos nossos hábitos e vontades, mas implica sempre mudanças, deixar para trás tantas vezes família, comodidades ou até mesmo «os mortos», o que em nós vai mudando e a que vezes sem conta nos agarramos. E seguir Jesus é deixar tudo isto para trás… E anunciar o Reino de Deus é apresentar este mundo de mudança, de caminho a percorrer, tendo muitas vezes que «queimar o próprio arado», como fez o profeta Eliseu, porque agora o trabalho a realizar é outro e o «arado», outrora essencial ao trabalho, agora seria apenas mais um estorvo.
E como nos é difícil fazer esta distinção entre o que precisamos e o que nos vai «prendendo» e atrasando nesta vida. Como prometemos ao Senhor que O queremos seguir, mas rapidamente olhamos para trás, e logo surgem motivos para adiar por mais um tempo essa tomada de decisão, mesmo que eles nos pareçam os mais legítimos…
O convite é claro e simples: «Segue-Me!»… Assim, desta mesma forma, deveria ser a resposta…
Ainda não há muito tempo, era discutida em praça pública a possível alteração de um dos símbolos nacionais – o Hino – o que levou também à consequente discussão da necessidade de um maior conhecimento sobre os símbolos nacionais e o que representavam.
Com uma letra considerada por alguns como um incentivo à guerra e à violência, que não reflectem a postura nacional sobre esta questão, (esquecendo o aspecto histórico e não meramente actual do símbolo em questão), a conclusão a que este debate levou foi ela mesma mais preocupante do que o próprio debate: muitos portugueses desconheciam (desconhecem, atrever-me-ia eu a dizer) o Hino Nacional.
E mais do que centrar a discussão em torno do grito histórico e de exaltação da defesa do território nacional, o «Às armas! Às armas!», (muito necessário noutras épocas), olhemos para toda uma letra que convida a olhar para essa mesma identidade que recebemos ao nascer portugueses, para toda a história e tradição herdada, para todo um passado que fez deste «rectângulo à beira mar plantado» uma grande nação, acima de tudo um país que se orgulha de o ser.
E passa-nos tantas vezes despercebido o «levantai hoje de novo o esplendor de Portugal»… Um esplendor feito história, inspirado num passado tantas vezes desconhecido, mas um esplendor feito ânsias de um futuro, onde não desapareçam virtudes e valores que ajudaram a construir o país e o ajudarão, certamente, a manter um rumo e criar horizontes e objectivos a cumprir.
O «levantar de novo» uma educação com princípios e que não ande ao sabor de correntes ou opiniões pessoais; um espírito colectivo, onde o respeito e a felicidade sejam possibilidades a procurar por todos e para todos, e não o guerrear de vontades e caprichos pessoais; uma identidade, onde há espaço para cada um e para todos, nas suas diferenças e igualdades, onde os direitos não se sobrepõem aos deveres, e onde se respeitam ideologias e crenças, sem as considerar coisas do passado ou alvos a abater por «políticas mais escondidas» …
Levante-se, de novo, Portugal… Não um pequeno país, não o país dos problemas e das intrigas, mas esse «nobre povo», onde o que enaltece não são os números ou as festas de «fogo de vista», mas sim a vontade de crer, de querer e do sonhar…
E como dizia Fernando Pessoa, logo após o tão conhecido e divulgado «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», «Senhor, falta cumprir-se Portugal!» …
E se também a nós, Jesus perguntasse: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Certamente, muitas e diversas respostas surgiriam... Mesmo nós, daríamos respostas diferentes consoante o momento que vivemos, influenciadas pelo nosso estado de espírito e por tantas coisas que nos rodeiam... Certamente, iríamos procurar formular uma resposta mais cuidada, mais teológica, com base em algo que lemos ou que nos foi dito... Procuraríamos cuidar e pensar bem uma resposta que deveria ser espontânea...
Mas, a pergunta de Jesus apanha-nos de surpresa, como aos discípulos... E não espera grandes respostas bem formuladas, mas sim a resposta de uma certeza de vida, como a de Pedro. Uma resposta de profunda fé, daquele mesmo anseio, daquele mesmo desejo que expressa a frase repetida «a minha alma tem sede de vós, meu Deus».
E, nos momentos de sofrimento e de dor, em que nos voltamos ansiosos e até mesmo com dúvidas para um Deus que pensamos ausente, lembremos como o próprio Jesus anuncia aos discípulos que a salvação passa por esse mesmo sofrimento do Filho de Deus e do Homem, rejeitado e crucificado, mas ressuscitado e vivo, força para os que n’Ele crêem.
E o caminho para O seguir, para com Ele entrar na vida eterna, é o que o próprio Cristo nos apresenta: «renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me»...
Quantas vezes também nós olhamos com desconfiança os outros que recebem perdão. Desconfiamos, porque como somos incapazes de perdoar, não gostamos que os outros recebam o perdão, que julgamos erradamente só existente para nós, só nosso... A nós, ao olharmos as nossas vidas, tudo nos parece tão relativo, tão sem gravidade. Apenas nos outros está a maldade, as más intenções, os maus desejos. Em nós, o mal é tão pequeno, ao passo que nos outros ele cresce sempre até ser imperdoável...
A pergunta de Jesus deixa-nos a pensar: não pergunta qual dos dois foi mais perdoado, mas sim, «qual deles ficará mais seu amigo?». Porque do perdão nasce não o medo da condenação, não o terror do castigo, como poderia fazer supor a história de David, mas sim essa gratidão feita amizade, feita relação para com Aquele que perdoa, gratidão feita amor, pela nova oportunidade que nos é dada, esse «vai em paz» de Jesus àquela mulher e a cada um de nós...
E a certeza de que a fé salva é dada pelo Senhor, mas também por São Paulo que nos apresenta um bom objectivo: «vivo animado pela fé no Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim».
E que bom seria se, com toda a verdade, não apenas das palavras, mas sim de toda uma forma de viver o dia-a-dia, também nós disséssemos como o Apóstolo: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.» Isso sim, é verdadeiramente ser cristão...
A imagem do Espírito que pairava sobre as águas, que passava por entre a vida a emergir, alentando e orientando as criaturas é uma imagem que irá acompanhar toda a história da criação. O Espírito de Deus que dá a vida a todas as coisas, que as chama à existência, a uma existência não vazia, mas plena de sentido, com uma missão e objectivo próprio no desenrolar da história e dos tempos...
A imagem das criaturas que recebem a vida por esse «sopro de Deus», deixando de ser só matéria, para que tudo se renove...
Mas, continua a mesma e eterna pergunta: qual o sentido que tem para nós a vida?
Dizemos que o Espírito é Senhor que dá a vida... mas, o que entendemos por isto? Que vida recebemos do Espírito? Que vida nos dispomos a receber e viver?
Estamos demasiado presos a uma rotina, a uma quotidianidade a que chamamos vida, tão ao sabor das nossas disposições momentâneas, tão cheia de alegrias passageiras tal como de desilusões e momentos de desespero... E se é isso que consideramos a vida, sempre tão voltada, tão aprisionada à tirania de um fim que não compreendemos ou aceitamos, mas por cuja fatalidade parecemos ser dominados, parece cruel dizer que essa vida nos é dada como dom, como oferta para viver e aproveitar...
Dizer que o Espírito nos dá essa vida... é quase ironia pura.
Agora, pensar e sentir que, desde o momento do nosso Baptismo, no qual o Espírito nos dá a verdadeira vida, essa que está prometida, que nada nem ninguém poderá tirar, que se vive desde já na esperança, essa vida a que com verdade chamamos eterna, vivemos cada momento não com os olhos postos na morte, mas agarrando com todas as forças essa mesma vida que nos é dada como dom, como oferta, como graça.
Então sim, dizemos e sentimos que é o Espírito que dá a vida, Ele que procede do Pai e do Filho, como Jesus tantas vezes diz no evangelho, que o Espírito é enviado por Ele e pelo Pai para ajudar os que crêem, para lhes dar a unidade da fé, para que se cumpra a vontade do Pai e todos os que acreditam se salvem.
E como nos é lembrado no final de cada oração, de cada vez que fazemos o sinal da cruz, também nós adoramos o Pai e o Filho e o Espírito Santo.
E acreditamos que foi este mesmo Espírito a «voz de Deus» junto dos profetas de todos os tempos, ensinando-os, guiando as suas palavras para que fossem a Palavra de Deus junto dos homens, para que conduzisse os homens até Deus que fala e está presente no mundo e na história.
Que a Palavra que escutamos e lemos, Palavra de Deus que nos é confiada, é Palavra inspirada por este mesmo Espírito, «Ele que falou pelos profetas»...
E é importante pensarmos: qual a nossa posição perante esta vida eterna que recebemos no Espírito? Como vivemos esta mesma esperança nesta vida do dia-a-dia? Como recebemos e procuramos viver esta mesma Palavra inspirada?
Palavras do Senhor Jesus, que tantas vezes ouvimos, e devemos aprofundar, reconhecendo que também nós O recebemos, recebemos o Seu Corpo e Sangue, como alimento de vida eterna.
Mistério eucarístico, mistério do «Corpo de Deus» que recebemos, mas que não se encerra na solenidade de um dia festivo, mas que cada cristão é convidado a redescobrir e a participar em cada celebração, desse memorial do Senhor, anunciando «a morte do Senhor , até que Ele venha», como lembrava São Paulo.
E a Eucaristia lembra-nos continuamente que tudo o que anunciamos, o Evangelho, que também nós como o Apóstolo, somos chamados a anunciar, não é de inspiração humana, mas coloca-nos numa maior intimidade com o próprio Deus, faz-nos viver desde já uma nova vida, de raízes tão fortes, tão cheia de plenitude, que nem a própria morte a pode fazer desaparecer, já que o próprio Jesus venceu a morte e nos faz participar dessa mesma vitória.
Por isso, vivemos o nosso dia-a-dia, não olhando a morte, fruto da nossa humanidade, mas olhando desde já a vida sem fim, que pela fé e pela esperança, sabemos esperar...